Fui convidado pelo Cel Ary Motta para palestrar sobre a Odontologia Hospitalar Brasileira e produzi o texto base abaixo que será apresentado amanhã no Hospital Central do Exército (HCE).
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A transformação de um serviço de odontologia tradicional em um serviço de odontologia verdadeiramente hospitalar não ocorre sem traumas. Dedicados profissionais que atuam em hospitais, mas em um contexto de atenção básica (e.g. dentisteria, promoção de saúde bucal individual ou coletiva e outros procedimentos da clínica geral) ou de média complexidade (serviços especializados oferecidos por profissionais atuando dentro de um contexto de excelência técnica, e.g. periodontia, endodontia e prótese dentária) podem supor, pelo tempo que lá exercem suas atividades, que seus serviços sejam essenciais, ou a excelência do que se pode oferecer à população assistida. Mas, infelizmente, o tempo e o grau de comprometimento com os serviços e pacientes, geralmente ASA I e II, não necessariamente são os fatores que deslocam o eixo do atendimento para o que se espera da atuação do cirurgião dentista em centros de alta complexidade, como são os hospitais.
A prática da odontologia é um desafio em qualquer nível. Lidar com pessoas que tem necessidades bucais, que tem traumas psíquicos por experiências prévias, que tem dor presente ou sua expectativa, que tem possibilidade de sangramento e de tomar agulhadas não torna a vida do cirurgião dentista nada fácil. Somar tudo isto com um paciente ASA III e IV (com necessidades sistêmicas seriamente comprometidas por problemas médicos) é mais um desafio.
O desafio de atuar neste ambiente obriga que os dentistas saiam de sua zona de conforto, representada por procedimentos simples, em pacientes saudáveis ou ligeiramente comprometidos, em consultórios confortáveis, ergonômicos e bem planejados, com assistentes pró-ativos e compromissados, liberando o paciente imediatamente após os procedimentos e baseando-se apenas nos próprios conhecimentos para a tomada de decisões para:
a) realizar procedimentos complexos e enfrentar diagnósticos difíceis;
b) se engajar no atendimento ao paciente com um problema médico que contra-indique seu atendimento fora do ambiente hospitalar, como, por exemplo, os neuropatas, pacientes psiquiátricos e imunocomprometidos, entre outros;
c) atuar tanto no ambulatório especialmente adaptado para pacientes hospitalares, quanto nos quartos, enfermarias, CTIs e centro cirúrgico;
d) utilizar equipamentos portáteis, materiais e instrumentais acondicionados em inúmeras caixas pesadas e que sempre deixam de levar algo “essencial” aos procedimentos, obrigando os dentistas a serem verdadeiros artistas do improviso;
e) contar com assistentes que não foram, em sua maioria, corretamente preparados para atuar neste ambiente, afinal os TSB e ASB não fazem seus cursos na alta complexidade, e os técnicos de enfermagem não conhecem os materiais e procedimentos da odontologia;
f) lidar com a necessidade de esperar a completa recuperação do paciente para permitir sua liberação ou alta, que nem sempre será feira no mesmo dia do ato operatório;
g) ter que tomar decisões coletivas para condutas clínicas, pois é o grupo que terá que lidar com as consequências dos atos.
E além disso;
h) aprender a arte de se comunicar, através de inúmeros formulários, com as equipes de enfermagem para proporcionar uma boa estadia ao paciente internado;
E, finalmente,
i) acostumar-se a trabalhar com pacientes que necessitem de monitoramento de sinais vitais, com estabelecimento de adequada via venosa ou sob anestesia geral;
O mais fácil mesmo, para quem se formou nos padrões tradicionais da odontologia, é permanecer em uma espécie de fuga da realidade para não ter que encarar os desafios da odontologia hospitalar. Porém, negando aos pacientes, que só devem ser atendidos nestas condições, a correta e segura prestação dos serviços.
Mas, e se o cirurgião dentista tradicional decidir desafiar seus instintos básicos e se engajar na busca da odontologia hospitalar em sua essência? O que este profissional pode encontrar em sua jornada rumo à consumação de seus ideais? O que este dentista – que se prepara para auxiliar as CCIHs na prevenção da pneumonia nosocomial, que se propõe a compor uma equipe de experientes cirurgiões dentistas, que articula com os inúmeros serviços de um hospital geral a atuação baseada em protocolos baseados em evidências, que tem algum apoio dos órgãos administrativos competentes, que tem na sociedade a expectativa angustiada da oferta destes serviços – realmente precisa?
A realidade é que ele precisa, ainda, de reconhecimento e legitimação (a portaria 1.032 já ajudou muito), precisa do apoio dos serviços de enfermagem, de materiais e equipamentos específicos (assim como a própria odontologia convencional), precisa de frequente capacitação profissional e intercâmbio (as emergências médicas são mais comuns exigindo treinamento contínuo e os protocolos estão sempre sendo reatualizados, por exemplo), precisa de colegas que tenham a mesma determinação e vontade de encarar os novos desafios e rotinas, precisa dos especialistas em CTBMF que já possuem experiência na alta complexidade e podem ser verdadeiros preceptores, precisa que os índices de produtividade valorizem seu contexto de dificuldade, precisa competir com outros serviços já consolidados por espaços em centros cirúrgicos e leitos e, mais que tudo, precisa que se saia da zona de conforto, ou melhor, que a zona de conforto troque de lado. Afinal, tudo é uma questão de perspectiva.
A idéia que sempre defendo, de que o dentista hospitalar deve ser formado pela via do internato (na graduação) e da residência (na pós-graduação) passa por este aspecto. Um jovem tem muito mais capacidade de se adaptar do que um profissional já em meio ou fim de carreira. Cobrar de alguém, já em vias de se aposentar, que sua rotineira atuação em um gabinete odontológico padrão será trocada por idas e vindas aos CTIs, enfermarias e centros cirúrgicos é o mesmo que obrigar um coelho a viver em árvores. Ao contrário, a zona de conforto do profissional que passou pelos desafios da alta complexidade desde sua tenra entrada na odontologia será a própria alta complexidade.
É patente que estamos diante de uma época de transformação na Odontologia. Hoje temos exemplos de várias doenças, dentre as mais agudas e fatais (como as doenças cardiovasculares) àquelas mais crônicas (e nem por isso amenas) e prevalentes como as cefaléias que podem ter no cirurgião dentista um de seus profissionais responsáveis pelo tratamento, em integração com cardiologistas e neurologistas, respectivamente. Não faltam protocolos que enaltecem a participação do CD no processo do diagnóstico, tratamento e prevenção de problemas médicos, que eram, há alguns anos impensáveis. A boca é, por exemplo, considerada o maior reservatório de patógenos do corpo humano que podem provocar desde a contaminação direta em outras regiões como a desregulação dos mecanismos imunológicos de defesa.
Temos a analgesia inalatória executada pelos dentistas brigando pelo seu espaço. A odontologia do sono, a periodontia médica a estomatologia querendo mostrar a sua cara e a sua competência, mas ainda não temos todo o respaldo de nossas entidades de classe, das outras profissões da saúde, dos convênios médicos e odontológicos (que ainda não cobrem ou reconhecem alguns dos procedimentos e doenças da medicina oral), da academia e de nossos próprios colegas, defasados por um modelo de formação onde o dentista não é obrigado a conhecer e praticar a medicina oral em alguma época de suas vidas, como acontece em vários países desenvolvidos do mundo.
Será que é chegada a hora desta mudança de paradigma?
Espero que eu tenha idade suficiente para ver esta transformação ocorrer, em todo Brasil, e presenciar tudo o que de bom será executado, criado, adaptado, modificado e estudado para permitir que esta instigante área de atuação se descortine em sua plenitude. E que as ilhas de excelência em odontologia hospitalar passem a ser os continentes, como certamente irá acontecer, em breve, aqui no HCE.