Não é nada confortável escrever um texto para desnudar verdades que conflitam com as ações das lideranças que, em princípio, existem para proteger e enaltecer a profissão. Mas, as intenções demonstradas e as notícias recebidas conquanto a condução da Odontologia Hospitalar no Brasil merecem considerações aprofundadas para esclarecer pontos de vistas.
Em 2007 houve a movimentação inicial sobre o projeto de lei 2776, do então deputado Neilton Mulin, do Rio de Janeiro, e que, na ocasião tratava da Odontologia em UTI. Foi um trabalho político da diretoria do CRORJ e da ABORJ que convenceram o deputado sobre a importância da descontaminação oral na prevenção da PAV. Eles se basearam em trabalhos científicos que estavam sendo divulgados internacionalmente há alguns anos e que no Brasil tinham como maiores incentivadores periodontistas de São Paulo.
No início do trabalho legislativo o PL sofreu grandes críticas e se estagnou, mas mudanças na sua concepção, onde foi incluída uma visão mais abrangente para outros setores hospitalares e mesmo domiciliar (um bom trabalho da nova relatora, a deputada Érika Kokai), fez com que seu caminho no sentido da aprovação se tornasse mais facilitado.
Ultimamente temos recebidos várias notícias especialmente do CFO, que vem trabalhando muito para a aprovação do projeto, enaltecendo as vitórias no Senado onde o atual PLC 34, só depende agora do envio para a sanção presidencial. Mas, uma emenda foi sugerida que mereceu reflexão deste blog.
Analisando todo este quadro isoladamente, que já dura 5 anos, tem-se a impressão que a Odontologia Hospitalar é algo recente, e que está sendo construída a partir de agora. Porém isso não é verdade. Voltando um pouco no tempo é conhecido todo o trabalho já desenvolvido nos institutos de oncologia e hematologia do país que já vem da década de 1960. Hospitais gerais do país já desenvolviam trabalhos com pacientes neuropatas graves e sindrômicos desde a década de 1970. Nesta década residências em Odontologia Hospitalar já existiam, e na década de 1980 foi iniciada a residência do Hospital das Clínicas da USP, que dura até os dias atuais.
A criação da Estomatologia, foi fruto em grande parte da vivência e mudanças na vida hospitalar onde a maioria destes cirurgiões dentistas pioneiros já trabalhavam, e que acabou resultando na fundação da SOBEP (*).
Em 2002 a criação das especialidades da OPNE e a Odontogeriatria deram mais condições aos CDs de se armarem de conhecimentos e experiências que permitem a muitos deles, hoje em dia, terem importantes trabalhos com diversas áreas dos pacientes sistemicamente comprometidos, intra ou extra hospitalar.
Também em 2002 foi publicada a RDC nº 50 da ANVISA que trata normatização da estrutura física dos hospitais brasileiros. Nesta, a Odontologia já era contemplada com um espaço na emergência/urgência em um primeiro nível e com um ambulatório de apoio aos andares (enfermarias).
Outro marco da época foram CDs de diversos estados se mobilizarem em um ambicioso, mas ainda não concluído, projeto de uma associação nacional de OH criando a ABRAOH.
Em 2008, o CRO-RJ, um dos idealizadores do PL 2776, foi procurado por CDs do Rio de Janeiro, que tinham diversos tipos de vivências hospitalares, recebendo a sugestão de hospedar um grupo de cirurgiões-dentistas dispostos a dar uma dimensão maior ao PL e à própria Odontologia Hospitalar. Convencido pela lógica das evidências o Dr. Afonso Rocha, presidente do CRO-RJ, e demais conselheiros tiveram a maturidade de receber este grupo e ainda criar a primeira comissão de Odontologia Hospitalar do país, reconhecendo que o PL 2776, apesar das boas intenções, era incompleto.
Nesta mesma época o MEC e o Ministério da saúde iniciaram as residências multiprofissionais, oferecendo à Odontologia a primeira perspectiva oficial, desde as tentativas iniciais da década de 1970, de uma formação hospitalar ampla, mesmo que desvinculada das especializações do CFO.
Paralelamente, os grupos de CDs ligados às entidades da Medicina Intensiva, SOBRATI e AMIB, vendo as possibilidades de mercado que a aprovação do PL poderia oferecer se mobilizaram criando, respectivamente, uma capacitação e influenciando a ANVISA a incorporar a assistência odontológica nos cuidados intensivos na RDC 7, que entrou em vigor em março deste ano.
Na esteira da criação da comissão de OH do RJ, outros CROs do país também foram se mobilizando para criação de suas comissões. Estas, em conjunto, vêm ganhando cada vez mais parceiras e desde 2011 estão se reunindo para discutir os diversos aspectos da estruturação e normatização desta área no país, afinal, e apesar de toda a história relatada acima, nunca se construiu um modelo permanente e claro da Odontologia Hospitalar no âmbito clínico.
Em 2012 e 2013 participaram dos encontros das comissões 24 estados e representantes do CFO, SOBEP, ABOPE e ABRAOH, mostrando o crescimento da necessidade em se aumentar a visão estratégica dos vários elementos afins com o tema.
A visão das comissões de Odontologia Hospitalar dos CROs é de que a área deve ser enxergada de uma forma ampla, e que não deve haver compartimentalizações na atuação hospitalar. Também recomenda ao CFO, principal entidade da classe, o adequado reconhecimento do CD preparado para a missão. Esta visão, que recentemente recebeu o apoio da SOBEP, uma das mais (senão a maior) importantes entidades vinculadas a ação odontológica clínica no ambiente de alta complexidade, pode estar ameaçada.
E é aí que volto a questão das intenções.
Pois, em uma forte campanha política para a aprovação do PLC 34 da Odontologia Hospitalar, o CFO mostra-se favorável à compartimentalização da área. Ao enaltecer a “Odontologia na UTI” ao invés da “Odontologia Hospitalar” o CFO desmerece o trabalho das comissões. Ao não criticar um texto impreciso e dúbio que preconiza a “assistência odontológica nas UTIs exclusivamente ao CD e fora desta não” o CFO parece concordar com a lógica de que o trabalho do CD fora da UTI é menos importante que nesta. O CFO ainda utiliza o falho argumento de que apenas o trabalho do CD seria o responsável pela redução da PAV, quando não se conhece evidências de que técnicos empenhados na mesma função sejam menos eficientes. E foi por este motivo que o PLC 34 recebeu uma emenda na última semana, afinal a presença do CD só deverá ter relevância quando houver um motivo real que justifique sua presença na UTI, a despeito do trabalho que deve exercer como um norteador das questões envolvendo a saúde bucal e prevenção de agravos, em todo hospital.
O CFO pode argumentar que está fazendo um trabalho político, e que tecnicismos não cabem neste momento. Mas nada justifica jogar para a plateia que a UTI, e não o hospital é o foco. Nada justifica a hipervalorização da “assistência odontológica” na prevenção da PAV e a não valorização da assistência ao paciente cardiopata grave que está prestes a ser operado, ao doente sob quimioterapia apresentando uma mucosite severa, a necessidade de atendimento sob monitorização de um paciente com histórico de choque anafilático, o atendimento de coagulopatas e a necessidade de um patologista bucal nos serviços hospitalares de anatomopatologia. Estes são só alguns dos muitos exemplos de como a presença do CD vai alterar significativamente o diagnóstico, a evolução e o tempo de cura.
O CFO mostra intenções de cunho eminentemente político ao, por exemplo, negar às comissões um legítimo papel de importância na condução das articulações envolvendo a Odontologia Hospitalar. Também desdenha suas próprias câmaras técnicas que poderiam estar lhe prestando um auxílio evidenciando a importância da Estomatologia, da OPNE e da Odontogeriatria no atendimento aos pacientes comprometidos tanto intra quanto extra hospitalares, ambos objetos deste projeto de lei.
Se existe alguém com autoridade para se utilizar politicamente deste projeto, este é o CRO-RJ, ou a ABORJ, pois foram os dirigentes destas entidades que deram o início a todo este projeto. São os verdadeiros e genuínos “Pais da Criança”. Mas, mesmo estes dirigentes, tiveram a grandeza de enxergar que a Odontologia Hospitalar é algo muito maior do que escovar dentes, aspirar secreções e besuntar clorexidina nos pacientes entubados. É algo muito maior do que agir corporativamente, a despeito da impossibilidade prática de se colocar CDs em todas as UTIs do país, trabalhando diuturnamente nos 7 dias da semana, algo que nenhum país do mundo fez(**).
O CRO-RJ deu o pontapé inicial para as comissões, não restringindo em nenhum momento a voz e a opinião dos diversos CDs do estado envolvidos com os diversos aspectos da OH. E a ABORJ tem aberto a possibilidade de se realizar eventos em seus congressos e recentemente autorizou a implantação de um curso de Odontologia Hospitalar com a visão da atuação integral sem interpor qualquer objeção, pelo contrário.
Dizer que o projeto de lei ao virar lei vai transformar a Odontologia Hospitalar no país é algo tão falacioso quanto afirmar que organizar uma Copa do Mundo ou uma Olimpíada vão melhorar a qualidade de vida da população.
A qualidade da Odontologia Hospitalar depende de gestão, de ciência, de formação acadêmica e, acima de tudo, de organização institucional. O CFO ao permanecer em cima do muro e não se decidir sobre a criação de um grupo oficial de OH, mostra que está à mercê. Ao não sentar para conversar com o MEC e Ministério da Saúde sobre a questão das residências multiprofissionais em hospitais, mostra que é cativo de um conceito atrasado de formação acadêmica. Ao não se posicionar sobre as normas de qualificação profissional do CD que atuará na alta complexidade lava as mãos e mostra que deixará a cargo de conveniências de ocasião esta necessária e urgente decisão.
Eu me decidi pela Odontologia porque gosto desta profissão. Gosto de ajudar pessoas e livrá-las de suas doenças. Mas a Odontologia não é mais a mesma de 30 anos atrás. Boa parte dos CDs não querem e não precisam mais ficar enfurnados em consultórios realizando procedimentos curativos. A Odontologia para ser respeitada como área de saúde, e mesmo como profissão deve evoluir. Deve considerar muito a possibilidade de se portar como uma área médica, pois não é outro papel que o CD desempenha ao emitir diagnósticos, prescrever, pedir exames, atuar invasivamente, internar e se sujeitar a todos os riscos que estas funções acarretam. Se isto se dará com CRO ou com CRM não me cabe decidir, mas a necessidade do conhecimento médico e de um amadurecimento institucional são cada vez mais necessários.
Que o CFO, minha casa, entenda que estas palavras não são contra pessoas, contra colegas que certamente estão tão imbuídos quanto eu no crescimento da profissão. Mas contra uma ideologia que é predominante nesta entidade. A de que a Odontologia não é protagonista no processo de saúde geral da população.
Eu, como Cirurgião-Dentista, quero o devido respeito que mereço pelo que eu faço e pelo que eu represento.
CFO, nos ajude.
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(*) Informações em negrito atualizadas e corrigidas em 17/11/13 e mais informações no comentário abaixo e em post sobre histórico da OH.
(**) a redução da incidência de PAV é resultado de uma série de mudanças nas rotinas dos pacientes entubados. Em nenhum país do mundo foi exigida a obrigatoriedade da higiene oral por CDs.